quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Viola de amor

Nas ondas do mar me enlevo
nessas ondas me redimo
meus sofrimentos são nada
nas águas das ondas claras

(nos ventos do mar me enlevo
nesses ventos me redimo
sofrer é estar de passagem
entre o agora e o eterno)

Como as ondas que se quebram
e são sempre as mesmas ondas
vou seguindo meus destinos
como as ondas que se quebram

(como os ventos que nos passam
e nos levam os pensamentos
vou vagando, vendaval
devassando e devassado).

Antonio Brasileiro

Loucura e poesia


Furtava as cores de todas as paisagens
que colhia.
Um dia morreu
e um arco-íris bebia
seus olhos.

Antonio Brasileiro

Poema de amor

E era azul o dia da partida.
Não um azul azul como os azuis da alma
colorida, mas negro azul, profunda
escuridão beirando o nada.

Azul
assim, hermético, escuro –
escuro como a alma, não a calma, a
alma: pois era azul,
luz última, o dia da partida.

Antonio Brasileiro

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Que tanto buscamos?
O rabo esquecido
na alba?

Quem tanto
nos chama? A voz
esquecida no antanho?
Quem chama? Onde estamos?

Quem somos? Sabíamos
que é fim? É
silêncio
o nome que bradam
as máquinas obscuras
do Tempo? Que tempo?
Que tempos? Quem somos?

Antonio Brasileiro
Estar com o rio não é molhar-se na água.
Nem ser leito.
É ser a água e o leito.
E o mar.
E ser as nuvens do céu.

Nosso destino é o que somos. Somos
o destino – o olho d’água
e a foz.
Somos a foz
e o ruído das águas se encontrando.

E as nuvens do céu e o homem
sentado numa pedra. E a pedra.

Antonio Brasileiro

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Madrugada


Para o homem que dorme na rua
o asfalto é uma noite escura
e sem estrelas.

Rita Apoena

sábado, 24 de outubro de 2009

Free jazz

Vânia Medeiros

Pois que me desce, imprevisível, a gota d'água morna pelas pernas.
Observo e sorrio com os dentes tortos, ainda reféns de toda curva e círculocomo sãos os céus de todas as bocas.
E eu, desordenada, refém de nada,
mas dona de um pássaro cego que voa esquerdo, enviesado,
dado a desastres aéreos e feridas graves nos joelhos.

Fecho os olhos e encaro o violento chão, que na horizontal o corpo cede a todo movimento.


Encho e esvazio
útero,
pulmão,
idioma,
direção,
coisa nenhuma.

Julya Vasconcelos

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Caminhando

vou abocanhando leve
as peles morenas
ou pálidas
vou deitando
em cada uma
me plantando
em cada corpo
vou beijando
bocas pretas
e vermelhas
e tocando as línguas quentes
vou bebendo
todos os amores
cuspindo
todos os venenos.

Réca Poletti

O espírito

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:
Andorinha indene ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

Natália Correia

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Assombros

Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.

Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

Affonso Romano de Sant'Anna, in: Lado Esquerdo do Meu Peito. Ed. Rocco

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Lilya Corneli
Mas também, às vezes, a Noite é outra: sozinho, em postura de meditação (será talvez um papel que me atribuo?), penso calmamente no outro, como ele é: suspendo toda a interpretação; o desejo continua a vibrar (a obscuridade é transluminosa), mas nada quero possuir; é a noite do sem proveito, do gasto sutil, invisível: estoy a escuras: eu estou lá, sentado simples e calmamente no negro interior do amor.


Roland Barthes, in: Fragmentos de Um Discurso Amoroso. Ed. Francisco Alves