sábado, 23 de maio de 2009

Os lírios que demoram

Somos atrasados, somos ultrapassados por nossa pressa
só percebemos o amor a tempo de lembrá-lo
só descobrimos que era a última chance depois de perdê-la
só aprendemos depois que os erros foram cometidos,
que as oportunidades passaram,
que os anos foram estampando nosso rosto;
beijaríamos mais doce se soubéssemos que aquele
seria o último beijo;
gravaríamos a expressão do riso, o som do riso,
a leveza do riso, o porque do riso;
amaríamos mais quem nos importa do que
nosso egoísmo;
amaríamos mais... e apenas isso nos salvaria
de uma vida comum.

(O amor esquece de começar. Você estava dento dele, e eu acabo de chegar. Só agora cheguei ao amor, eu cheguei a você. Depois que as juras venceram, que os presentes foram dados, que os corpos foram expostos. Eu estou sempre atrasada. Eu sou sempre depois de você. Tenho sempre as certezas erradas. Você já foi, e eu ainda estou te esperando naquele aeroporto.

Eu te amo, tarde mais, naturalmente.)

Cáh Morandi

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Semântica

Não se enganem comigo:
se digo sul pode ser norte,
chego mais fico ausente,
o triste é também o belo,
procuro o que não se perde
nem se pode encontrar.

Buscar respostas nos livros
é esconder-se entre linhas.
Não creio no que se enxerga,
mas nisso que se disfarça
por mais que se tente olhar:
assim me tem seduzida.

Eis o jogo que eu persigo,
meu jeito de ser feliz,
o desafio que me embala:
sempre que escrevo "morte"
estou falando de vida.

Lya Luft
Para me refazer e te refazer volto a meu estado de jardim e sombra, fresca realidade, mal existo e se existo é com delicado cuidado. Em redor da sombra faz calor de suor abundante. Estou viva. Mas sinto que ainda não alcancei os meus limites, fronteiras com o quê? Sem fronteiras, a aventura da liberdade perigosa. Mas arrisco, vivo arriscando. Estou cheia de acácias balançando amarelas, e eu que mal e mal comecei a minha jornada, começo-a com um senso de tragédia, adivinhando para que oceano perdido vão os meus passos de vida. E doidamente me apodero dos desvãos de mim, meus desvarios me sufocam de tanta beleza. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca.

Clarice Lispector, in: Água Viva. Ed. Círculo do Livro

Lya Luft Caio, amado amigo

Caio Fernando Abreu
Não preciso falar do escritor tocado de genialidade, justamente celebrado nestes dez anos de sua morte. Falo do amado amigo, quase um irmão mais novo. Era estranha aquela amizade nossa... ou deverei dizer "é", no presente?

Caio Fernando Abreu nasceu um dia depois de mim, exatamente dez anos mais tarde. Eu era casada com um ilustre professor universitário e pesquisador, tranqüila mãe de três filhos; Caio, grande alma inquieta, era um andarilho misto de príncipe e alternativo. Ouvi falar dele muitas vezes antes de o conhecer. Guilhermino Cesar, crítico severo e erudito, disse-me dele: "Escritor não nasce pronto, mas Caio Fernando é uma exceção: aos 20 anos produz um texto em que nada há para melhorar".

Conheci Caio em minha casa, em Porto Alegre, onde me visitou com meu amigo Luciano Alabarse, diretor de teatro, que havia pedido: "Quero levar seu romance Reunião de Família ao palco, e só há uma pessoa capaz de adaptar esse livro: Caio Fernando".

Alguma coisa em pessoas tão incongruentes como Caio e eu transcendeu todas as diferenças, e imediatamente nos tratamos como irmãos. Demos muitas risadas, falamos coisas loucas e profundas e engraçadas, nos comovemos às lágrimas, e naturalmente dei minha autorização. A adaptação de Caio foi magnífica, a peça, montada, foi um sucesso, e a partir dali acho que passei a entender melhor meus personagens, com seus labirintos e dramas existenciais, agora vistos em carne e osso.

Nossa amizade estava decretada. Ficamos em contato. Carta, telefonema ou raro encontro eram simples continuação de um diálogo nunca interrompido. De São Paulo ou Amsterdã, ele me escrevia, com assiduidade ou em longos intervalos. Algumas vezes relatava suas lutas e dificuldades, momentos bons ou pobreza e solidão. Em outras ocasiões, com um pouco daquele seu humor tão peculiar, escrevia: "Ando casto e em paz. Rego minhas plantas, escrevo cartas, faço poemas. Pareço uma recatada velha dama inglesa".

De mim, dizia com muita graça: "A Lya, com aqueles cândidos olhos azuis e jeito de mãezona, não tem idéia do que escreve, tanto mistério e dor. Aquilo deve ser tudo psicografado".

Quando ele adoeceu, li seu artigo revelando sua condição, num dos mais admiráveis testemunhos de humanidade e coragem que conheci neste mundo hipócrita. Perto do seu fim, tivemos duas experiências de amizade destinada. Numa delas, jantávamos juntos, num restaurante discreto perto da casa dele. Caio de repente segurou minha mão por algum tempo, depois disse: "Eu sempre vivi como quem quer se matar. Agora que sei que vou morrer... como eu amo a vida!" Nada melodramático, nenhuma autopiedade, apenas dolorida constatação.

Quando ele já estava definitivamente no hospital, quase não recebendo visitas, eu tinha notícias constantes através de amigos ainda mais chegados, como Graça Medeiros. Um dia ele quis me falar, então telefonei. A voz de Caio, inconfundível, era quase a mesma. Falamos duas, três banalidades, e então ele perguntou, direto: "Lya, o que você acha que vai acontecer comigo quando eu me libertar deste corpo?"

Seria indigno dizer algo falsamente consolador a alguém como Caio: nem ele nem nossa amizade nem o momento mereciam isso. Respondi, na maior simplicidade, aquilo em que acredito: "Acho que, livre desse corpo, você vai ser pura intuição, e enxergar num deslumbramento tudo isso que passamos a vida procurando entender, e sobre o que escrevemos tanto".

Ele fez um silêncio breve e voltou à carga, num misto de angústia e carinhosa provocação: "E se não for assim?"

Assumi o mesmo tom: "Ah, meu querido, se não for assim, nós dois vamos virar uns diabos bem perversos, e vir fazer toda sorte de malandragem neste mundo!"

Sua risada soou no fio do telefone, linda, clara, forte como nos tempos de saúde. Foi nosso último contato: ele morreu dias depois.

Mas está comigo, como outros seres amados que se foram sem realmente partir.

Lya Luft

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Sem face

Vânia Medeiros
Abre os braços
Me recebe desmoronando,
Desfalecendo;
Me aperte contra teu corpo
E olhe nos meus olhos se apagando;
Contempla em mim
Essa coisa inacabada que sou
Essa beleza que não tenho
Essa frieza que não quero
Esse desespero em desabar;
Me abrace, me aceite
Sobre tuas pernas
Ainda que eu seja
Essa mulher sem face;
Me enlace, me afunde
Nesse gozo que surge
Ainda que eu pareça
Essa fera sem nome.

Cáh Morandi

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Lição


o rio segue seu curso
e se diploma no mar.

Líria Porto

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Vânia Medeiros
De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,
Ou se vacila ao mínimo temor.

Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante,
Cujo valor se ignora, lá na altura.

Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfange não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma para a eternidade.

Se isso é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

William Shakespeare