quinta-feira, 23 de abril de 2009

Desencontrários

Leonilson
Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.

Paulo Leminski, in: Distraídos Venceremos. Ed. Brasiliense

terça-feira, 21 de abril de 2009

Quarto do suicida

Van Gogh
Vocês devem achar, sem dúvida, que o quarto esteve vazio.
Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes.
Uma boa lâmpada para afastar a escuridão.
Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais.
Buda sereno, Jesus doloroso,
sete elefantes para boa sorte, e na gaveta — um caderno.
Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?

Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial,
Alegria, a faísca dos deuses,
a corneta consolatória nas mãos negras.
Na estante, Ulisses repousando
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os moralistas,
seus nomes em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Os políticos ao lado, muito retos.

E não era sem saída este quarto,
aos menos pela porta,
nem sem vista, ao menos pela janela.
Binóculos de longo alcance no parapeito.
Uma mosca zumbindo — ou seja, ainda viva.

Acham então que talvez uma carta explicava algo.
Mas se eu disser que não havia carta nenhuma —
éramos tantos, os amigos, e todos coubemos
dentro de um envelope vazio encostado num copo.

Wislawa Szymborska / Tradução de Ana Cristina Cesar

quinta-feira, 9 de abril de 2009

ventos
insistem
nas portas

aqui
nenhuma dor
é breve.

Mariana Botelho
Juliana Moraes
detalhes liames fissuras
silêncios odores deméritos
quem pensa que nos conhece
sabe tão raso
tão pouco

(se mais amar nus
soubéssemos).

Líria Porto

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Tristeza

as lágrimas secaram
chorei sal
aquele foi um mal irreparável
tal como se o mar se evaporasse
e eu tivesse que remar
tocar o barco.

Líria Porto

Id

Graça Loureiro
há dias que sou assim
a sombra da minha sombra
e meus pés pisam repisam
as minhas próprias pegadas
sei curvas sei obstáculos
não sei porém desviar-me

passeio sobre meus passos
caminho nos descaminhos
erro sempre os mesmos erros
repito as mesmas palavras
sou sombra da minha sombra
a perseguir-me o passado.

Líria Porto

Dedos

Meus dedos têm desertos.
Há areia fina na minha vontade.
Meus dedos são hipótese
como gaiola vazia.
Não têm tato,
só conhecem o tagarelar dos acenos.

Meus dedos demoram a pensar.
Têm memória curta.
Têm a surpresa do estalo,
mas não regulam bem,
cada qual em seu drama:
a polegada de vida medida,
o fura-bolo do desatino,
o maior-de-todos os descompassos,
seu-vizinho do medo de viver
e a vida mindinha que se leva.

Ronaldo Costa Fernandes

Canção do exílio

Alma,
Pássaro solitário,
Como é difícil abranger-te!
Nem sei como defender-te,
Incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
Visitas todas as terras,
E te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...

Dantas Mota, in: De Planície dos Mortos