quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Criança:

Irisz Agocs
Filho(a): 1. raspas de coração 2. felicidade que suja fraldas; 3. tubo extremamente barulhento em uma extremidade e absolutamente irresponsável em outra; 4. paz banguela; 5. big-bang dentro do peito; 6. motivo da existência de calendários; 7. principal causa da acrofobia; 8. material orgânico usado para derreter granito; 9. ausência de bolinhas amarelas; 10. sinônimo de amanhã; 11. nome dado à barriga de espécimes femininos em estado interessante; 12. indivíduo devorador de bolotas vermelhas doces presas a palitos; 13. animaizinhos que nunca crescem; 14. antônimo de suicídio; 15. abobalhador de adultos; 16. ser gerado originalmente em laboratório por fábricas de filmes fotográficos; 17. o outro nome da insônia; 18. efeito colateral do amor; 19. comprovação científica da existência de Deus. (Ex.: Meu coração, amor, é filho do seu sorriso, e basta o som de seu olhar para ele dormir com cheiro de anjo”.)

André Gonçalves, in: Coisas de Amor Largadas na Noite. Ed. Ideias Inc.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Aula de desenho

Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.

Maria Esther Maciel, in: Triz. Ed. Orobó Edições

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Desapego

Arranco-te de mim
aos pedaços
lanço-te de mim
aos destroços
atiça-me a vida em mim
aos poucos
sabe-se só em mim
a mente
faz-se real em mim
presente.

Rosana Marques Paulon

domingo, 25 de janeiro de 2009

Diálogo entre o tempo e a flor

Calêndulas
calêndula
calêndul
calêndu
calênd
calên
cale

Cale
calen
calend
calendá
calendár
calendári
calendário

Renata de Souza Leone, in: Mergulho em Versos / Coletânea Poética. Ed. Parma LTDA

Os medos que me afastam

Lilya Corneli
Os medos que me afastam de ti
Os muros que te escondem de mim
A saudade que me destrói por dentro
Por quê?
Por que essa saudade logo agora?
Me parece tão tarde...
Como poderia ser, se outrora nem senti tua falta?
Tudo me afasta de ti: os barulhos do dia
Os rostos que não me dizem nada
Não te encontro em nenhum deles
E as tardes passam
E eu permaneço assim:
Escondendo-me em meio a essas paredes gigantes
Onde escondo as minhas mágoas
E tudo parece distante
Quando tu não está, em casa.

Ana Moreira

Espera

Lilya Corneli
A estrada vazia
Um deserto em volta
Assim está a minha vida
De tanto desencontros
Tudo que quero é um riso teu
Um abraço forte
A esperança de não estar sozinha, perdida
Meus sonhos, puro desencanto
Que vagam por aí sem sentido
Vão sendo carregados pelo vento
Até quando?
Até quando essa espera?
Pois já demorei tanto esperando você
A quem dediquei todo o meu amor
E de repente vai-se por aí
Deixando-me aqui nesta estação
De não abanando
Até quando?

Ana Moreira

sábado, 24 de janeiro de 2009

Frida

Frida Kahlo
Tina Modotti não está sozinha frente aos inquisidores. Está acompanhada, de cada braço, por seus camaradas Diego Rivera e Frida Kahlo: o imenso buda pintor e sua pequena Frida, pintora também, a melhor amiga de Tina, que parece uma misteriosa princesa do Oriente mas diz mais palavrões e bebe mais tequila que um mariachi de Jalisco.
Frida ri às gargalhadas e pinta esplêndidas telas desde o dia em que foi condenada à dor incessante.

A primeira dor ocorreu lá longe, na infância, quando seus pais a disfarçaram de anjo e ela quis voar com asas de palha; mais a dor de nunca acabar chegou num acidente de rua, quando um ferro de bonde cravou-se de um lado a outro em seu corpo, como uma lança, e triturou seus ossos. Desde então ela é uma dor que sobrevive. Foi operada, em vão, muitas vezes; e na cama de hospital começou a pintar seus auto-retratos, que são desesperadas homenagens à vida que lhe sobra.

Eduardo Galeano, in: Mulheres. Ed. L&PM

Sobre o abraço

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
Abraçar
é encostar um coração no outro.

Rita Apoena

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Promessas

Lilya Corneli
O teu riso surgiu como uma promessa
De dias melhores em mim
Este ser carregado pelas enxurradas
De dias de sol
De tristes madrugadas...
Acreditei...
Juro que acreditei
E te esperei e fiquei só na estrada
Até a minha poesia já sabia o teu nome
E a esperança disse-me: Acreditas!
Mais tu não vinhas
E as tuas lembranças iam-se apagando
A cada dia...
Assim como o meu riso
E a minha poesia
Sei que foi tolice minha
Acreditar na promessa de um riso
Que aos poucos se desfazia.

Ana Moreira

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Intimidade

se tocar um blues
e eu estiver de azul
como a tarde
me beija o pescoço
me explora o decote
(aos amigos se permitem
certas intimidades)

mas se tocar um tango
dança comigo
beija-me a boca
quem sabe me ama


(que não é de ferro
a amizade)
depois
tomar café com leite
e pão torrado
e seguir sendo amigos
por infinitas outras tardes.

Márcia Maia, in: Um Tolo Desejo de Azul

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Trapezista

A vida chega em silêncio:
desenovela reflexos,
interroga a esfinge
que responde ou nega
num espelho baço.
(A resposta nunca é clara
nem é pequena.)

Não é a mim que vejo:
é ao outro, num misto incerteza
e esperança de que não seja
mais um rosto virado,
uma boca cerrada
- mais um desgosto
a cada passo.

Desejo, sonho e medo,
o amor é salto sem rede
entre razão e a magia.
(E só assim vale a pena.)

Lya Luft, in: Para Não Dizer Adeus. Ed. Record

Poema clichê

Rabiscos em Fotos
Verão
Ver-te
Verter
Vermelho
Sangue
Amor.

Renata de Souza Leone, in: Mergulho em Versos / Coletânea Poética. Ed. Parma LTDA

Amor platônico

Rabiscos em Fotos
Ser

sentindo

sem sentido

sem ter tido.

Renata de Souza Leone, in: Mergulho em Versos / Coletânea Poética. Ed. Parma LTDA

Veneta

acima duma rima
o pensamento voa
e nem esta garoa
o desanima

vez por outra de canoa
ou na proa dum navio
atravessa o mar o rio
mas depois retorna
qual uma bigorna
a me atormentar

) pensamento azul
de norte a sul
de leste a oeste
igual pecado
ou peste (

Líria Porto

.

Caroline Feitosa
do jeito que as coisas vão
até parecem felizes
comportando tanto impossível
nunca do jeito que são
 
coisas pelo contrário 
pessoas perdem matizes
viram vultos sombras nadas
coisas quando serão?

 Alice Ruiz, in: Dois em um. Ed. Iluminuras
Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez".

Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.

Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência". E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração.

Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.

Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.

Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.

Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
- ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca ...

Caio Fernando Abreu, in: O Essencial da Década de 80. Ed. Agir

domingo, 18 de janeiro de 2009

DeviantArt_Curlytops
Tenho os pensamentos longos transcritos em versos curtos, não abuso da palavra, não me estendo em assuntos; Só acrescento amor em tudo que faço, e todo amor vem da gana da vida... Em encontrar beleza nas “coisinhas”, em se apaixonar todo dia pelo céu, em ser quase azul entre o mar, e se ver voando, e se ver brincando em asas que só a imaginação é capaz de nos dar.

Cáh Morandi

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

(Marca)passo

Caroline Feitosa
Segui
Tua cor
Em algum luzir
De peito pintado

Segui
Teus traços
Em algum rabiscar
De olhar matizado

Segui
Teu contorno
Em algum entonar
De riso riscado

Segui
Teu sinal
Em algum traçar
De amor bordado

Cris de Souza
Nunca são as coisas mais simples que aparecem quando as esperamos. O que é mais simples, como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se encontra no curso previsível da vida. Porém, se nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos nos empurrou para fora do caminho habitual, então as coisas são outras. Nada do que se espera transforma o que somos se não for isso: Um desvio no olhar; ou a mão que se demora no teu ombro, forçando uma aproximação dos lábios.

Nuno Júdice

Serena

Essa ternura grave
que me ensina a sofrer
em silêncio, na suavidade do entardecer,
menos que pluma de ave
pesa sobre meu ser.

E só assim, na levitação da hora alta e fria,
porque a noite me leve,
sorvo, pura, a alegria,
que outrora, por mais breve,
de emoção me feria.

Henriqueta Lisboa

Horizonte

Lilya Corneli

Alma em suspiro
pelo encontro
do que fica
sempre mais longe.

Henriqueta Lisboa

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Primavera

O teu amor, querida,
fez um dia de primavera
neste começo de outono
que é a minha vida.
E do ramo, de onde as primeiras folhas
se soltavam pálidas, sem cor,
surgiu uma flor imprevista:
o teu amor...

Teu amor chegou assim
como uma coisa que no fundo se deseja
mas não se espera,
emocionando o coração, neste começo de outono
como um dia de primavera!

J. G. de Araújo Jorge, in: Tempo Será. Ed. Record

sábado, 10 de janeiro de 2009

Março


Que etéreo veneno entorpecente
De sonhos infinitos e tranqüilos
Trazes contigo, límpido março azul
Das transparentes distâncias!

Helena Kolody

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Ciclo

o tempo estende-se,
dias a fio,
contíguos,
que perduram
- pendentes -
pelas barras do destino.

não demora,
o tempo exíguo,
recolhido,
será passado
a ferro brando.

[enquanto uma nova era
de horas aguadas,
na máquina do tempo,

espera...]

Valéria Tarelho

Casa

Vânia Medeiros
nossa casa é o melhor lugar do mundo
e por não estarmos sós no universo, e por estarmos
tão sós no universo, busco o melhor do mundo
em outras histórias.
mesmo no desconcerto, entre o cheiro de lençóis alheios,
um sofá antigo, único habitante de uma enorme sala vazia.
a vida, vem de uma maçã,
que mora há dois dias numa bolsa e logo mais será um beijo.
a insônia aposta com a madrugada
quem ouvirá primeiro o despertador.

Jane Sprenger Bodnar

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

1 Conto

Marta Glinska
Um gole
Coloco de volta a calcinha e saio dali, sem olhar para a cara dele. A festa acabou e preciso encontrar o meu marido. Na maioria das vezes, vou direto para o bar. Mas, pelo adiantado da hora, é mais fácil encontrá-lo caído em um canto qualquer.
Recolho os cacos e voltamos para casa.
No início, eu gritava e fazia as malas.
A seguir, veio a tristeza profunda.

Depois, a fase da vingança, em que descontava a minha raiva por suas bebedeiras, trepando com desconhecidos.

Hoje, evoluí na minha catarse, escolhendo como objeto o pau do seu melhor amigo.
Olho para o meu marido deitado sobre a cama, ainda vestido, babando sobre o lençol e não sinto nada.
Vou dormir, pois amanhã é sábado: dia de praia, churrasco e muita cerveja.

Adriana Oliveira

Saudade

Caroline Feitosa
A mulher que sou vive em pedaços espalhados pelos olhos
Olhos meus, olhos alheios
Olhos perdidos, que nem vejo
carregando partes que nem sei de mim.
- É tão difícil encontrar-se por aí -

Mas existe,
e quase não acredito nisso,
um par de olhos escuros
que carregam sozinhos
meu mosaico completo
Como um baú, que sem saber, guardasse todos meus segredos.
Carregam e ajuntam os pedaços do que sou
pra que eu possa ver-me neles como num
espelho.

E eu,
num vazio que me corrompe,
corro atrás desses olhos tão distantes
pra matar por um
instante
a saudade
de mim.

Raiça Bomfim

Invisível

Juliana Moraes
pessoas
com suas malas,
mochilas e valises
chegam e se vão
se encontram, se despedem
e se despem dos seus pertences
como se pudessem chegar
a algum lugar
onde elas mesmas
não estivessem

você se move
como se uma legião invisível
te aprovasse
você se vai
como se de longe
você mesmo
se chamasse
você me vem
como se só em mim
enfim
você em você
chegasse.

Alice Ruiz

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Caroline Feitosa
Não te compreender
Não me fez te amar menos.

Completo as palavras cruzadas
com a ajuda dos resultados.
Leio um livro
que não é lançamento.
Roubo a cerveja separada
para a visita.
Assisto a um filme no escuro.
Telefono sem pretexto.
Os bolsos do meu casaco
formam meu diário.
Não sofro de pudor
e desfalco minha pobreza.
Esforço-me agora
para desaprender.

Fabrício Carpinejar, in: Como no Céu. Ed. Bertrand Brasil
Deviantart
Não me inquieto
quando não recebo as respostas
das perguntas que não fiz.
Eu me conformei
em reservar alguma coisa
de ti para saber depois.
Um pouco do nosso amor
será póstumo.
É recomendável
não descobrir todos os segredos.

Fabrício Carpinejar, in: Como no Céu. Ed. Bertrand Brasil

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Os Estatutos do Homem

Tarsila do Amaral
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Thiago de Mello, in: Os Estatutos do Homem. Ed. Valer

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Viver cansa

Juliana Moraes
Estou cansada de acordar todos os dias ouvindo o despertador tocar. Cansada de ver a lua cheia iluminando o meu quarto à noite e deitar sozinha para dormir. Cansada de não poder fazer nada além do que eu já faço. Cansada de marcar encontros comigo mesma. Cansada de me sentir um peixe beta num aquário hexagonal. Cansada de pedir uma pizza gigante e ganhar só um grão de orégano. Cansada dessa solidão que vira carência, que vira expectativa, que vira dependência, que vira solidão de novo. Cansada da dorzinha de cabeça que tem me acompanhado como se fosse o sexto dedo da minha mão direita. Cansada do mau humor dos outros. Cansada do meu mau humor também. Cansada de ir sempre aos mesmos lugares, fazer as mesmas coisas e me desapontar com as mesmas pessoas. Cansada de ter um porta-retrato vazio. Cansada de aparentar ser uma mulher bem resolvida. Cansada dessa solidão que às vezes vira saudade de quem nem conheço e outras vezes vira vontade de ser uma escritora suicida. Estou tão cansada, que não sei mais que dia é hoje, porque não faz diferença. Qualquer que seja o dia, o despertador vai tocar e vai recomeçar essa rotina que não tem nem sombras, porque não tem luz. Pois é, estou sozinha. Sem ninguém, sem sal, sem assunto e quase sem vida. Lavei com água o que estava colorido com gouache. Ficou tudo preto e branco. Mais preto do que branco. Mais triste do que feliz. Mais vontade de chorar do que de sorrir. Ficou tudo tão frágil, que não resiste nem a um peteleco.

Márcia do Valle