domingo, 30 de novembro de 2008

Telas

Igor Machado
Fez quinze anos e tomou uma decisão: viveria um grande amor!

Um par de sapatos de saltos altos, um batom cor de café com leite e um sutiã com enchimento de borracha eram as primeiras armas naquele arsenal de objetos letais. E um plano. Traçado nas tardes de um distante verão, nas páginas de um caderno espiral e resumido à listagem dos grandes amores que lhe visitavam os sonhos: Romeu e Julieta, Peri e Ceci, Rainier de Mônaco e Grace Kelly. E dispensou amores que não chegavam aos balcões e às varandas, às folhas de palmeiras, ao glamour de Hollywood, ao azul do Mediterrâneo.

Quando fez vinte anos decidiu que era o tempo do grande amor. Óculos de tartaruga, roupas pretas e nenhum sutiã eram as definitivas armas naquele laboratório de experimentações. E as fotos pregadas no painel de cortiça, montado no frio que ameaçava as manhãs de primavera. Sartre e Beauvoir, Goddard e Anna Karina. E dispensou amores que chegavam ao som da marcha nupcial e cheirando a flor de laranjeira.

Fez trinta anos, decidindo que era o tempo do definitivo amor. Um par de diplomas, roupas de grife e perfumes franceses tornaram-se as armas que empunhava dia a dia, durante todos os dias daquele outono, enquanto o vento frio do entardecer espalhava as folhas onde escrevia nomes: Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, Carmem e Don Jose... E renegou amores dissonantes, de colorido cotidiano.

Quarenta anos e o tempo de qualquer amor. Um par de olhos cansados, roupas largas e o cheiro do tempo perfumando as madrugadas de insônia e devaneio. E as lembranças coladas à pele como se fora uma segunda pele no inverno que a noite anunciava.

Ontem, fez cinqüenta anos.

Ro Druhens

Alb

Vânia Medeiros
um palito separa
o prazer da dor
um ponto separa
o prazer da dor
é como se você
estivesse numa e
s
c
a
d
a
de três degraus
1
2
3
e do degrau
do meio,
um degrau pra cima
é o prazer
um degrau pra baixo
dor.
aí eu te pergunto
onde dói mais
onde dói menos
e porque me sinto feliz
e triste
ao mesmo tempo.

Bruna Beber

Um

Serenade For the Doll
Existe um único sentimento,

que dele saem outros. Feito a ilusão das sete cores que traz o espectro solar, essa evocação obsedante. De modo que o amor é transparente, luz não é cor. De modo que amor não é do jeito que chamamos, ele não vem. Ele fica lá. Amor é uma distância, o intervalo entre nós e seu centro. Ficamos longe porque se orbita sendo menor que a força. Estamos em órbita pra seguir o ritmo, não pra ditá-lo. Se amar, não se mova.

Andréa del Fuego

Decepção

Ewa Brzozowska

desembaraçar os nós
destrinçar fio por fio
é descobrir na verdade
um amontoado
de mentiras.

Líria Porto

Sobre o aborto

E naquele dia,
o seu filho nasceu para dentro.
E quanto mais o tempo passava,
mais o menino crescia:
esbarrando no seu coração.

Rita Apoena

Moça

Não estou falando de um mundo cor-de-rosa ou de pessoas perfeitas, sempre prontas para nos acolher, amar, caminhar ao nosso lado. Não falo disso, mas da tristeza nos olhos de quem vira as costas e a gente não vê. A beleza por dentro de um peito encouraçado que a gente não sente. A solidão de quem afasta um amor e se deita em camas tão frias. É do instante quando os olhos se perdem no nada e nenhuma mentira é capaz de enganar si mesmo. É desse instante solitário, desse instante sem abraço, que eu digo. Todo mundo vai virar as costas ou dizer que merece coisa melhor ou debochar das mentiras que eles contaram... mas a gente pode sempre voltar e acolher com amor, ser os primeiros a começar. Afinal, se a hostilidade do mundo despertar a nossa, quem vai ser o primeiro a sorrir?

Rita Apoena

sábado, 29 de novembro de 2008

Alma estrangulada

Anne Aubrey
Cada um de nós que vai por essa estrada deserta
sente que uma multidão de espíritos vive dentro de si.
Às vezes nos surpreendemos tão diferentes de nós mesmos...

(As sombras na alma pesam tanto, são tão quietas,
como a noite, são tão frias, como o luar).

... tão diferentes, como se, de súbito,
uma multidão de espíritos vivesse dentro de nós.

Emílio Moura, in: Itinerário Poético. Ed. Belo Horizonte

Amor

Os rios falam de ti,
Tantos peixes migradores
Trazem-te cartas do Oriente!

Os anjos circulam suspirando
Em torno da colméia de teus lábios

Disfarçado em jardineiro
O Hóspede vem te visitar

Preso ao teu corpo dia e noite
Perdi a noção do eu
E te amo tanto que não sei mais
Se me salvo ou me danarei.

Murilo Mendes, in: As Metamorfoses. Ed. Record

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Irreversível

Muito tempo depois, o encontrei. Na plataforma da estação. E eu que tanto me esforçava para não lembrar aquele dia, em segundos e em detalhes, o revivi. A faca, o grito, a roupa rasgada. O barulho dos carros passando na estrada. A escuridão. O mato me arranhando as costas. A sede. O sangue. O desespero. A dor. E ele, o maldito, tomando posse do meu corpo como fosse entulho, lixo. Até se fartar. E me deixando ali, à beira-nada, sangrando, chorando, doendo, para morrer devagar, eternamente, a cada dia, a cada noite, a cada ano. Fingindo ter esquecido. Fingindo não sentir o medo todo o tempo ao meu lado, grudado à pele, à minha pele. Senhor e dono e amante e algoz e tirano: o medo. Por tudo isso, quando o vi parado à plataforma da estação, não hesitei. Esperei até ver a luz do trem, da locomotiva do metrô, bem perto. E o empurrei. Na correria para entrar no vagão, ninguém percebeu. E eu, naquele exato instante, criei asas. Mas não ressuscitei.

Márcia Maia

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Sodoma

Corria.
O pensamento sem fôlego tentava registrar todos os seus abandonos. Corria. O que que era mais desespero deixar para longe: um pé de figo, lua cadente, vestido carmim, uma esquina, uma escada — corria — um terço de caroços de azeitona, anel de pedra falsa, colônia barata, xícara sem asa, algumas roupas de baixo, três ou quatro retratos — corria — discos, livros, assombros, avencas ao vento, musgo, um jardim, uma janela. Corria ao lado de A, pensando em B. Aquelas tardes de cores lentas sussurros incendiando o silêncio risadas lambuzadas a sua língua a minha língua nunca mais as suas mãos. Onde a vertigem? Corria. Relâmpagos matam mais do que vulcões, furacões e terremotos. Corria com A. Correria com A pelo resto da vida. Qual vida qual vida qual vida qual? Para sempre, tão iguais como o são uma saracura e um ramo de alecrim. Corria. Os dias monótonos medíocres — suava — os discursos insossos as noites inapetentes. Entre a sombra e a sombra, para sempre. Qual vida? Qual? Corria.

Num repente, a valentia, última chance: olhou para trás.

Pronto.

Agora, estátua de sal. E a sede.

Silvana Guimarães

[o silêncio]

Vânia Medeiros

o silêncio tange o
sino de tão
leve ninguém
escuta

Mariana Botelho

Água

Vânia Medeiros
Água.

fui sentir o cheiro de
terra molhada.

ficamos ali
eu e meu corpo,
cantando a plenitude do mato
depois da chuva.

Água.

me amei.

Mariana Botelho

Canção

Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.

Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.

Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.

Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.

Que tudo o mais é perdido.

Emílio Moura

Tempo

Caem as horas em nós que as impregnamos
do que a mente imagina e a alma arquiteta.
O sonho se transcende, é toda a vida,
toda a vida em si mesma; tão presente,
tão essência de tudo, que o ato de viver
é simples diálogo entre o instante que chega,
puro sopro, e o que dentro de nós é eternidade.

Emílio Moura

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Teu corpo/meu espaço

Teu corpo é raiz
rasgando a terra nua
do meu sexo

Teu corpo é vertical
onde os meus dedos tocam as distâncias

Teu corpo é diálogo sem palavras
O grito em ressonância
no meu espaço

Manuela Amaral

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

III

Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.
Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.

Hilda Hilst, in: Cantares do Sem Nome e de Partidas. Ed. Globo

Suicídio

Anne Aubrey
A vida amou a morte
mais do que havia
para morrer.

Apaguei os pensamentos
na espuma da pele.

Abandonar o paraíso,
a única forma
de não esquecê-lo.

Fabrício Carpinejar, in: As Solas do Sol. Ed. Bertrand Brasil

Perfil

Lara Jade
Não. Não tenho limites.
Quero de tudo
tudo.
O ramo que sacudo
fica varejado.
Já nascido em pecado,
todos são naturais
à minha condição,
que quando, por exceção,
os não pratico
é que me mortifico.
Alma perdida
antes de se perder,
sou uma fonte incontida
de viver.
E o que redime a vida
é ela não caber
em nenhuma medida.

Miguel Torga

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Nua

Porque me despes completamente
sem que eu nem perceba...
E quando nua
por incrível que pareça
sou mais pura...
Porque vou ao teu encontro
despojada de critérios...
liberto os mistérios
sem perder o encanto
do prazer...
Porque
quando nua
sou única
e exclusivamente
tua...

Isabel Machado

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

[...] Os amores antes de chegar, deviam me enviar cartas avisando com antecedência sua visita em minha vida, ou então um telefonema com ligação a cobrar, ou sinais de fumaça, ou pombos com recados, ou garrafas jogadas no mar. Mas que desse um jeito de me comunicar de sua dolorosa chegada, para que antes eu preparasse o terreno, tá entendendo? É, arrumasse a casa aonde moro e a casa da aonde moram meus sentimentos, dispensasse outras possíveis visitas, orasse pedindo sol e calmaria por todos esses dias que o amor ficasse, tirasse o pó acumulado sobre as esperanças, me prevenisse dessas dores de parto. Sim, dores de parto, parto duplo: uma nova vida chegando e já com alguma pretensão de logo partir. [...]

Cáh Morandi

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A leitura se tornou para ele um vício insaciável. […] A única coisa que sabia com clareza era que entre a prosa e os versos preferia os versos, e entre estes preferia os de amor, que decorava mesmo sem querer a partir da segunda leitura, o que lhe era ainda mais fácil quanto mais se tratasse de versos bem rimados, bem medidos, bem desesperados.

Gabriel García Márquez, in: O Amor nos Tempos de Cólera. Ed. Dom Quixote

Sobre a separação II

Brilho de Uma Paixão
Quando você vai embora de nós
o pronome parte-se ao meio
você diz que só leva o s
e o que adianta?
se comigo sobra o nó
na garganta.

Rita Apoena

O silêncio dos parques

No silêncio dos parques
encontro a pausa para ouvir
e sentir
o reencontro comigo mesma.

Entrei fragmentada
vejo-me inteira
antes sozinha
encontro um abrigo
no silêncio dos parques.

Ouço ao longe o clamor antigo
do tempo passado
da longínqua infância
quando alguém me levava pela mão.

Ainda ecoam as vozes da criança
no silêncio dos parques.

Sinto a brisa dos parques
rodopiam ilusões perdidas
sonhos renunciados
sopro de folhas em rodamoinho.

Passantes solitários
aquecidos pelos raios do sol
buscam o perfume do bosque
que ampara e consola
nos parques do silêncio.

Pétalas púrpuras açafrão e anil
cobrem o chão
brindam aos que se foram
enfeitam o tempo que resta
no emaranhado de árvores
no parque da floresta.

Momentos felizes
de um mundo simples
tranquilo
onde cada ser era gente
não virtual.

Pouco restou do mundo conhecido
para sempre um abrigo;
só a lembrança ecoa
no silêncio dos parques.

Cruzo a ponte do silêncio
entre o que passa
e o mundo
onde tudo se transforma.

Fábia Terni Leipziger, in: Mergulho em Versos / Coletânea Poética. Ed. Parma LTDA

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Ruínas

Tu estarás nos meus versos,
deitada, espichada,
louca, louca... ofegante
abraçada em trapos.
Tu estarás nos meus versos,
despenteada, sonolenta,
enrolada no lixo
que te cerca.
Tu estarás com as mãos em concha,
no gesto de molhar o rosto
na poça fétida.
E as ruínas
de todos os lados,
a abrigar restos de comida,
emolduram insetos esquecidos.
Tu estarás, sim,
nas páginas de um jornal
que serve como cama aos cães
e a outros como tu.
No peito de uma mãe
que não adivinhou tal sorte.
Na angústia do poeta
de te querer salva.
Tu estarás no meu livro,
vertical ou horizontal
tu estarás nos meus versos.
E se não te salvo... te verso!

Terezinha Tadeu, in: Cadernos Negros. Ed. Quilombhoje

Efeitos colaterais

Na propaganda enganosa
paraíso racial
hipocrisia faz mal
nosso futuro num saco
sem fundo
a gente vê
e finge que não vê
a ditadura da brancura
Negros de alma negra se inscrevem
naquilo que escrevem
mas o Brasil nega
negro que não se nega.

Jamu Minka, in: Cadernos Negros. Ed. Quilombhoje

Instruções para se apaixonar

Alone Gut

Encha o peito com mais de trezentos suspiros,
quando estiver bem levinho,
solte as amarras
e flutue.

Rita Apoena

Sobre o sono

O sono chega
quando a noite tenta
pendurar-se em minhas pálpebras
amarrando estrelas
- uma a uma -
em cada cílio.

Rita Apoena

Tempo

Parece que foi ontem, eu correndo entre as árvores tão cheias de frutos. Eu peguei um dos frutos, mordi. O tempo pegou uma das flores, caiu. Parece que foi ontem, eu deitada na grama para olhar as nuvens e meus dedos descobrindo na terra a flor que eu nunca poderia salvar. Se, ao menos, ela aceitasse o sol e a terra que eu tinha. Se, ao menos, não desistisse da primavera, quando o inverno chegasse primeiro, pousando as suas mãos sobre ela... Parece que foi hoje, os transeuntes com pressa, trazendo os caminhos do futuro para baixo dos pés. E eu entre os meus pés distraídos, descalços, colhendo do tempo, daquela antiga praça, uma erradia flor.

Rita Apoena

Metáforas para o rancor

Não adianta fazer metáforas para compreender o rancor inato de alguém. Só há rancor onde houve história e, se houve uma história, houve também leveza... No último vendaval, uma árvore caiu na rua, despencando grotesca e sem amparo, mas algumas folhas desgarradas cairam leves, pousando nela, depois.

Rita Apoena

domingo, 16 de novembro de 2008

O impossível carinho

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

Manuel Bandeira

sábado, 15 de novembro de 2008

O campeador e o vento

Vem o vento,
vai silvando.
O vento é quando?

É depois de ter amado.

Vento cervo,
puro vento,
se mistura
com os cedros,
ultrapassa o mirante,
se mistura
a outro tempo.

Vento quando?

É depois de ter lutado.

Carlos Nejar, in: O Campeador e o Vento

Contra a esperança

É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar, enquanto
um fio de água, um remo,
peixes existem e sobrevivem
no meio dos litígios;
enquanto bater
a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.

É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro a correr
sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite
em vão esconde.

O universo é um telhado
com sua calha, tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.

É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.

E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.

Um balde a mais
na esperança
e sobre nós.

Carlos Nejar

Poema da devastação

Há uma devastação
nas coisas e nos seres,
como se algum vulcão
abrisse as sobrancelhas
e ali, sobre esse chão,
pousassem as inteiras
angústias, solidões,
passados desesperos
e toda a condição
de homem sem soleira,
ventura tão curta,
punição extrema.

Há uma devastação
nas águas e nos seres;
os peixes, com seus viços,
revolvem-se no umbigo
deste vulcão de escamas.

Há uma devastação
nas plantas e nos seres;
o homem recurvado
com a pálpebra nos joelhos.
As lavas soprarão,
enquanto nós vivermos.

Carlos Nejar, in: Canga

O lugar das coisas

Gosto das palavras exactas, as que acertam
com o centro das coisas, e quando as encontro
é como se as coisas saíssem de dentro delas.

Essas palavras são duras como os objectos
que designam, pedra, tronco, ferro, o vidro
de espelhos quebrados com o calor da tarde.

Tento incendiá-las quando escrevo, como se
o fogo saísse de dentro da frase, e se espalhasse
pelo campo da página numa devastação de
[ sílabas.

Então, atiro sobre as palavras outras palavras,
água, pó, terra, o ar seco do verão, para que a
[ voz
não fique queimada nesta paisagem negra.

Recolho os restos, os adjectivos, os advérbios,
artigos, preposições, para que só as palavras que
[ indicam
as coisas fiquem no lugar que já tinham.

Pouco importa que as frases percam o sentido. O
que fica são os nomes das coisas, para que as
[ coisas saiam
de dentro deles e as possamos ver nos seus
[ lugares.

Nuno Júdice

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

XII

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
desejasse.

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo.
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst, in: Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. Ed. Globo

63



Ontem caminhei
Nos campos de chuva; hoje
chove dentro de mim.

Casimiro de Brito

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

.

Pode haver um dia em que a poesia mude de endereço deixe apenas tédio. Mas enquanto isso vem brincar comigo vamos até onde possa ser só riso possa ir tão longe possa ser tão lindo pode ser brinquedo pode ser tão sério.

 Alice Ruiz


Quando sonho,
sou outra.
Inauguro-me.

Helena Kolody, in: Infinito Presente

Estou sempre em viagem.
O mundo é a paisagem
que me atinge
de passagem.

Helena Kolody, in: Viagem Submersa

Hoje

Hoje há uma nova luz no horizonte
e é uma dádiva o dia.

Hoje, cristal,
momento a momento, pássaro,
muda o mundo, criança.
a vida acontece,
germina o futuro.

Hoje é o chão da existência.

Helena Kolody, in: Viagem no Espelho e Vinte e Um Poemas Inéditos
misto de tédio e mistério
meio dia / meio termo
incerto ver neste inverno
medo que a noite tem
que o dia acorde mais cedo
e seja eterno o amanhecer

Paulo Leminski, in: O Ex-estranho. Ed. Iluminuras

Os degraus

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

Mario Quintana, in: Baú de Espantos. Ed. Globo

Vazio

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

Augusto Frederico Schmidt
A poesia não está no papel,
Está na vida,
Vista e sentida,
Por olhos sensíveis,
E corpos que se permitem ir além.
Por almas que ousam,
Interiores que gritam.
Ser poeta um dia é fácil,
Difícil é sê-lo sempre.
Fácil é amar,
Difícil é libertar a quem se ama,
Libertar as palavras que inflamam.
Mas mais difícil não é libertar,
Nem amar, criar, ousar.
Difícil é ser.
Um ser contido no mundo
E conter o mundo dentro de si.

Carolina Salcides

Dançando

Emoção
braços
Corpos
laços
Boca
desejo
Beijo
Tango
vibração!
toques
mensagens
mudas
dançadas

Alheios ao meio

Difusa luz
Chama que atende
acende
seduz!

Na pele
calor
ardência
querência
amor!

Mercília Rodrigues

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Da chegada do amor

Sempre quis um amor
que falasse
que soubesse o que sentisse.

Sempre quis uma amor que elaborasse
Que quando dormisse
ressonasse confiança
no sopro do sono
e trouxesse beijo
no clarão da amanhecice.

Sempre quis um amor
que coubesse no que me disse.

Sempre quis uma meninice
entre menino e senhor
uma cachorrice
onde tanto pudesse a sem-vergonhice
do macho
quanto a sabedoria do sabedor.

Sempre quis um amor cujo
BOM DIA!
morasse na eternidade de encadear os tempos:
passado presente futuro
coisa da mesma embocadura
sabor da mesma golada.

Sempre quis um amor de goleadas
cuja rede complexa
do pano de fundo dos seres
não assustasse.

Sempre quis um amor
que não se incomodasse
quando a poesia da cama me levasse.

Sempre quis uma amor
que não se chateasse
diante das diferenças.

Agora, diante da encomenda
metade de mim rasga afoita
o embrulho
e a outra metade é o
futuro de saber o segredo
que enrola o laço,
é observar
o desenho
do invólucro e compará-lo
com a calma da alma
o seu conteúdo.

Contudo
sempre quis um amor
que me coubesse futuro
e me alternasse em menina e adulto
que ora eu fosse o fácil, o sério
e ora um doce mistério
que ora eu fosse medo-asneira
e ora eu fosse brincadeira
ultra-sonografia do furor,
sempre quis um amor
que sem tensa-corrida-de ocorresse.

Sempre quis um amor
que acontecesse
sem esforço
sem medo da inspiração
por ele acabar.

Sempre quis um amor
de abafar,
(não o caso)
mas cuja demora de ocaso
estivesse imensamente
nas nossas mãos.

Elisa Lucinda

sábado, 8 de novembro de 2008

[...] Nunca disseram adeus, nem até mais, nem qualquer outra coisa que desse possibilidade de um fim ou de um próximo encontro; terminavam as conversas com beijos, quando mais frios com abraços. Talvez ele a ame. Talvez ela quisesse saber disso. Por causa da mudez das emoções que sentiam, eles não sabiam que destino davam a si. O bonito deles é a coisa mais simples em suas histórias: de alguma forma silenciosa e cheia de esperança, eles esperavam um pelo outro, embora nenhum pedido tenha sido feito.

Cáh Morandi
Em colcha florida
me deitei.
Pássaros pintados
escutei.
Grinaldas nos ares
contemplei.

Da morte e da vida
me lembrei.
Dias acabados
lamentei.

(Flores singulares
não bordei.
A canção trazida
não cantei.

Naveguei tormentas pelos quatro lados.
Não as amansei!
Ó grinaldas, flores, pássaros pintados,
como dormirei?)

Cecília Meireles

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Segundo consta

O mundo acabando,
podem ficar tranquilos.
Acaba voltando
tudo aquilo.

Reconstruam tudo
segundo a planta dos meus versos.
Vento, eu disse como.
Nuvem, eu disse quando.
Sol, casa, rua,
reinos, ruínas, anos,
disse como éramos.

Amor, eu disse como.
E como era mesmo?

Paulo Leminski, in: Distraídos Venceremos. Ed. Brasiliense
passos lentos
escrevem
VONTADE DE CHEGAR.

precisa andar
como quem já chegou

chega de chegar

depressa
é muito devagar.

Paulo Leminski